sexta-feira, 10 de junho de 2016

Leitura da «Paixão Segundo São Mateus» de J.S. Bach

                            https://www.youtube.com/watch?v=xkm19nfaXl4

Coro inicial da «Paixão Segundo São Mateus» J.S. Bach:

O contexto da oratória no século XVIII - na época de Bach, em particular - é o pietismo, no qual há uma sistemática procura de uma identificação com Cristo, por parte do crente...Cada obra do género oratória (ópera sacra ou «drama em música») tem como objetivo assumido, pelo compositor e toda a comunidade, de propiciar a  elevação das almas dos crentes. 
A força deste género de obra músical decorre da sua espiritualidade manifesta e da proximidade ao povo de Deus, pois a sua matéria-prima é idêntica à da música corrente na época, dentro e fora da igreja. O povo de Deus reúne-se e participa ativamente, cantando, pois os coros inseridos nas oratórias são corais, que a assembleia reunida para o culto luterano, está acostumada a entoar todos os domingos. A Paixão de Cristo é vivida/sentida por todos: estão a «reatualizar», no sentido de «reviver simbolicamente», a Paixão de Cristo. É portanto um  ato religioso, dotado dum aparato musical considerável e de grande beleza estética. 
Para a teologia e pastoral luteranas não há música demasiado bela para cultuar a Deus, toda a música bela é matéria-prima legítima e adequada, para cantar a Glória de Deus. O seu simbolismo apela para uma meditação sobre o Corpo de Deus/Corpo Divino: «Olha para o Cordeiro que vai ser imolado, Redentor dos pecados do mundo». Pela virtude libertadora da música, o crente conhece o caminho da redenção. 
Esta leitura é perfeitamente canónica em termos teológicos.


A introdução instrumental corresponde à apresentação genérica do tema melódico do coral que se segue, mas também «dá o tom» solene do «drama  em música» que se vai desenrolar.

A «dança» implícita neste pulsar rítmico vai levar ao tema do coral de abertura, cuja letra resume a mensagem da Paixão, tal como no coro da tragédia grega clássica. O paralelo não pode ser fortuito, pois a referência aos modelos da antiguidade greco-romana, na época de Bach, era constante.  

A estrutura musical do primeiro coral da Paixão “Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen desenrola-se na estrutura -pergunta e resposta – o que é reforçado pela divisão do coro em dois: 

C1: Vinde filhas, auxiliai-me no pranto,
C1: Vêde!
C2: -Quem?
C1: O Noivo.
C1: Vêde, ele!
C2: Como?
C1: Como um Cordeiro
C1: Vêde!
C2: O quê?
C1: A sua paciência!
Etc…

A peça prossegue, em torno das mesmas linhas, constituindo  estas o fundamento da polifonia. Nota-se um pequeno interlúdio instrumental –semelhante à introdução – seguido por uma retomada com variação muito peculiar do coro inicial: por um lado, o tratamento em staccato do baixo contínuo, nas cordas,  por outro, no retomar das frases do coral, mas de forma separada: o efeito deste tratamento é um acentuar da dramaticidade, dum efeito de «pathos», para se chegar ao ponto culminante.   

Este coral introdutório é - em si mesmo - um monumento dentro do monumento que é a Paixão Segundo São Mateus. 
Não é possível decidir qual a componente que mais relevância teve na sua génese:- de ter sido, obviamente, composta com o objectivo de evangelizar, de edificar e fortificar os crentes;- ou desta música, inspirada na Paixão de Cristo, emergir como ato de piedade da mente profundamente devota de Bach. Pois ambas as motivações são perfeitamente compatíveis e complementares. 

O modo como esta peça é recebida pelo auditor, a ênfase que dá a este ou aquele aspeto, dependem da sua sensibilidade:
Para pessoas que se considerem não-cristãs, não-crentes, ou ateias, pode ser compreendida «racionalmente», como um monumento da música barroca. 
Mas, para pessoas sensíveis à transcendência, ao lado emocional, despertas para uma espiritualidade,  independentemente de terem ou não terem religião, esta composição tem um outro sabor: Ela é um veículo de encontro com o Amor Universal.

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