Mostrar mensagens com a etiqueta protestantismo. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta protestantismo. Mostrar todas as mensagens

domingo, 2 de julho de 2023

O PAGANISMO CRISTIANIZADO

 

    Foto: Menhir «cristianizado», de Saint Uzec (Bretanha)

A evolução das religiões instituídas afasta-as muito da sabedoria e ensinamentos dos profetas e seus primeiros seguidores. No caso do cristianismo, a religião de origem era a mesma que a do povo judeu, pelo que as pessoas que seguiram o Cristo inicialmente, consideravam-se dentro do Judaísmo. Mas, já em São Paulo, se nota um  afastamento em relação a certas práticas do judaísmo ortodoxo. 

Os dias santos, feriados, festas religiosas, foram colar-se às práticas de paganismo do Império romano. Sem essa colagem, não teria sido possível a  religião cristã tornar-se «religião de Estado». Estas festas eram celebradas por todos, desde tempos imemoriais. Se o pretexto era homenagear - nesses festivais - certas divindades, o seu espírito não era apenas de devoção a esses deuses ou heróis míticos: Era um pouco como o Natal de hoje, uma festa pagã, a pretexto da data (mítica) do nascimento de Jesus Cristo. 

Nas sociedades agrárias, os dias, semanas e meses estavam associados a tarefas agrícolas, comuns em toda a área mediterrânea. As épocas das colheitas, ou das sementeiras,  etc. estavam associadas às espécies cultivadas e ao ciclo anual das estações. Estes ritos, dedicados aos deuses agrários, implicavam sacrifícios de animais e/ou de produções vegetais, em honra do/da deus/a, supostamente responsável pela fertilidade, pela abundância das colheitas, etc. 

Também, desde tempos imemoriais, se assinalavam certos momentos* da trajetória do Sol: O solstício de Inverno (23 de Dezembro; festa do Natal) e o de Verão (23 de Junho, festa de S. João Batista). Os equinócios: O equinócio  da Primavera, coincidindo com a Páscoa, festa pagã da fecundidade e o equinócio do Outono, em Setembro, após a colheita dos cereais, coincidente com a vindima, a colheita da maçã e doutros frutos. 

Havia rituais associados à Deusa da Terra e da Agricultura, ou Ceres, a deusa que era responsável pela fertilidade agrícola. Nalguns povos, instaurou-se o Thanksgiving, ou seja, o dia em que se agradece a Deus pelas colheitas, em continuidade com festas pagãs com o mesmo fim.

O «Dia dos Mortos» (30 de Outubro) e o de «Todos os Santos» (1º de Novembro), foram instaurados com o objetivo de apagar a memória do Halloween, o  ritual celta de culto dos mortos.

Os camponeses e artesãos medievais não tinham direito a um mês de férias. Além disso, tinham muito pouca mobilidade: Quanto muito, podiam visitar parentes numa aldeia próxima, à distância de uma jornada a pé. Porém, tinham muitos dias feriados: As festas do santo patrono da vila ou cidade, além dos feriados tradicionais, celebrados em toda a cristandade: Natal e São Silvestre, Carnaval e Quaresma, Semana Santa e Páscoa, Corpo de Deus.

É um erro considerar-se que os «pagãos» (ou seja, todos os povos que celebravam religiões politeístas) eram forçosamente «bárbaros», primitivos, etc. Esta visão deturpa a profunda ligação das religiões politeístas, que eram as da Grécia e Roma antigas, com as mais elevadas realizações da antiguidade, todas as artes, as ciências mais avançadas, engenharia, arte de navegar, etc. e sobretudo a sofisticação da filosofia, com várias escolas que o Renascimento europeu (a partir do séc. XV) redescobriu e tentou emular.

A popularidade das festas pagãs, devia-se em parte a uma devoção genuína aos deuses e deusas que eram objeto de culto e celebração nestas festas. Mas, em grande parte também, elas estavam intrinsecamente ligadas aos ciclos naturais. Os povos, desde tempos imemoriais, tinham observado os fenómenos periódicos dos astros, da Terra, do Sol e da Lua; as estações do ano, os ciclos de reprodução de plantas e animais; etc...  Naturalmente, atribuíam os movimentos e transformações a forças divinas, cósmicas, que os deuses personificavam. Cada divindade presidia a um certo número de fenómenos da Natureza. Estas mesmas divindades também eram invocadas em circunstâncias particulares da vida dos indivíduos, do nascimento até à morte.

Ao fim e ao cabo, a nossa cultura está impregnada de símbolos e mesmo de crenças que vêm das religiões politeístas. Essa mesma herança está disfarçada pela cristianização de muitas festas pagãs, pela transformação de locais sagrados das religiões pagãs em santuários e locais de adoração de santos cristãos. A própria existência dos santos, embora na religião dos teólogos, aqueles sejam apenas «homens e mulheres notáveis, que constituem exemplos de vida e de fé para os cristãos», são vistos pelo povo cristão como se fossem (quase) deuses, aos quais se pede algo, que recebem dos devotos presentes (sacrifícios, num certo sentido, mesmo que não sejam animais sacrificiais), os devotos sentem-se obrigados em «cumprir as promessas feitas», enfim, uma quantidade de indícios de que a forma como os «santos-deuses» são ressentidos é muito semelhante à dos deuses do paganismo. Que outro significado terão as santas e os santos cristãos, serem os patronos de profissões, de atividades, ou os que devem ser invocados para determinadas doenças ou outros males ? 

O protestantismo - nas suas diversas tendências - insurgiu-se contra esses cultos «divinos» dados a santos e santas cristãos, pelas tradições populares. Mas não conseguiu eliminar por completo essa adoração dos santos, mesmo nas zonas mais profundamente influenciadas pelo protestantismo (ex: Estados do Centro e do Norte da Europa, assim como os EUA e Canadá). 

O catolicismo, predominante no Sul Europeu, na América Latina, e noutras paragens, tem abordado estas questões de uma forma ambígua: Na religião dos teólogos católicos, o conceito de «santo» é bastante semelhante aos dos protestantes. Mas, em relação ao povo católico há, não só uma tolerância em relação a crenças populares de origem pagã, como também existe um discreto ou ostensivo encorajamento de práticas de devoção, que são diretamente inspiradas do paganismo. Com efeito, as Nossas Senhoras disto ou daquilo, têm virtudes milagrosas «comprovadas» pelas lendas que estão ligadas a elas e aos seus locais específicos de devoção. Como disse acima, o modo como é feita a invocação de um santo é o equivalente a dar-lhes um estatuto de divindade, com o poder de «interferir» junto de Deus, para olhar pelo devoto e de realizar a cura ou alívio neste ou naquele aspeto da vida (saúde, dinheiro, ligações conjugais ou amorosas, etc...). Penso que a mentalidade dos que rezam, nestes termos, ao santo de sua devoção é idêntica - no essencial - ao que uma pessoa da antiguidade greco-romana faria, em relação ao deus sob a proteção do qual se colocava.

Embora teoricamente o Deus de cristãos, judeus e muçulmanos seja único, a verdade é que os povos onde estas religiões nasceram, tiveram religiões politeístas, que antecederam as «reformas» monoteístas. Os cristãos não puderam «erradicar» o politeísmo, senão «disfarçando-o» em adoração aos santos. Podem-se considerar os «exércitos» de santos católicos como um elaborado panteão, com especialidades médicas ou outras, cuidadosamente distribuídas, de tal modo que o devoto tenha - em qualquer circunstância - sempre um santo apropriado para invocar. 

Não vejo, portanto, diferença em qualquer aspeto essencial com as religiões politeístas existentes, ou passadas; também nestas, as divindades asseguram uma fração «dos trabalhos divinos», tendo que colaborar com a Entidade suprema, o Deus principal das religiões na Grécia e na Roma antigas (Zeus e Júpiter) ou o seu análogo noutras culturas. A Virgem Maria e outros Santos, são considerados interceptores junto de Deus, sendo este conceito do papel dos santos, em si mesmo, uma clara negação da omnisciência do Deus Supremo e mesmo da sua omnipotência.

Porém, aquilo que caracteriza a religião nascida há cerca de 2000 anos atrás, principalmente antes do período dos concílios, quando se começou a codificar o cristianismo, não tem muito que ver com a religião praticada depois pelos cristãos, pelo clero e pelas mais elevadas autoridades eclesiásticas. Muitas pessoas sinceras e totalmente inocentes foram parar às fogueiras da Inquisição, ou sacrificadas de múltiplas maneiras cruéis, apenas por colocarem questões sobre a adoração dos Santos. 

Talvez a maior traição dos que se dizem fiéis de Cristo, seja a sua intolerância sectária, que fez com que praticassem crimes, com a boa consciência de que os faziam «pela glória Divina». Este passado de intolerância sectária, ainda presente nalguns, é a maior negação da mensagem de Cristo. 

Não digo que não haja sectarismo noutras religiões, no passado e no presente. Mas, o que choca particularmente,  é que no caso dos Evangelhos de Cristo, a sua mensagem de Libertação espiritual profunda, tenha sido desvirtuada e o seja ainda agora, em tantos sítios e por tantas entidades eclesiásticas. Sem o seu papel pernicioso, o povo seria provavelmente menos fanático, haveria mais consideração pela Palavra e pelo Espírito da mensagem de Jesus.  

O meu esforço para encontrar uma via pessoal para viver em harmonia com os Ensinamentos de Cristo, tem recebido muito pouco apoio institucional. Penso que seja também o caso de muitos cristãos pelo mundo fora. 

O problema não decorre do texto das Escrituras Sagradas, mas, da perversidade daqueles que as interpretam a seu bel prazer, para conquistar e  consolidar o poder, nas igrejas e nas sociedades.  Chegam a negar - na prática - a «Boa Nova», que dizem seguir e propagar. Felizmente, conheço um certo número de teólogos e de filósofos cristãos, que esclarecem os aspetos de Libertação, Espiritualidade e Compromisso com os outros. Também existem algumas pessoas na minha vida pessoal, que são (ou foram) reais apoios para minha vivência cristã.

-------------

*)Ver a influência pagã no calendário cristão:

https://wol.jw.org/pt/wol/d/r5/lp-t/1966206


domingo, 12 de janeiro de 2020

A PROPÓSITO DAS ELEIÇÕES & CONCEITO DE DEMOCRACIA, NOS EUA


Não farei comentários sobre campanhas para a nomeação do candidato democrata, nem sobre as manobras de Trump, ou de outros... Nem irei fazer aqui uma análise sobre o significado que essas eleições possam ter para além das fronteiras dos EUA. Não; apenas queria chamar-vos a atenção para alguns factos, quando se fala sobre democracia. 

No mundo anglossaxónico, em especial americano, é comum fazerem-se apostas sobre muitas coisas, além das corridas de cavalos. É comum inferir resultados eleitorais a partir das quantias apostadas a favor ou contra a investidura de determinado candidato...como se pode verificar pelo gráfico abaixo, retirado do excelente site Zero Hedge:




                    

Sim, justamente, nesta corrida especial, alguns acabam por ficar de fora, ou porque foram sujeitos a campanha assassina de imagem ou porque não conseguem recolher fundos suficientes para ultrapassar em volume de propaganda outros candidatos mais afortunados (ou subsidiados).
Nota-se que o resultado é conhecido de antemão, com segurança muito grande, pela simples observação das somas investidas num determinado cavalo de corrida, perdão, candidato presidencial. 
Evidentemente, para se ter uma imagem rigorosa do total investido, é necessário saber-se quais as somas que as corporações vão doar, a sua aposta por este ou por aquele candidato. Em geral, elas dão aos candidatos dos dois partidos em contenda (mesmo que dêem mais a um, do que a outro): assim, têm influência garantida no pós-eleição, mesmo que vença o candidato que não é seu preferido. 
As somas astronómicas acabam por ser conhecidas, cerca de um ano depois das eleições, pois são doações legais das empresas, que inscrevem nas suas contas e descontáveis nos impostos, até um montante muito elevado. 
Além das empresas, os ricos costumam doar - a título individual - somas fabulosas, que são também registadas nas contas das campanhas dos partidos e dos candidatos, e tornadas públicas. 
Portanto, o resultado das eleições americanas é invariavelmente, desde há muitas décadas, decidido pelo montante dos capitais investidos nos candidatos. 
A avaliação do montante de que dispõem os vários candidatos é o dado mais seguro para a previsão do resultado eleitoral. Acerta mais vezes do que as sondagens por inquérito a cidadãos inscritos nos cadernos eleitorais.

- Um parêntesis sobre «universalidade» do direito de voto nos EUA: deve-se excluir deste número, a população prisional - a maior do mundo, em termos percentuais; os ex-presos, que tiveram condenações e cumpriram pena; os que não contam, porque nunca se inscreveram nos cadernos... por outro lado, tem de se incluir: os não-nacionais, imigrantes legais ou ilegais, inscritos e pagos para votar num determinado candidato; as pessoas já falecidas, cujos fantasmas insistem em votar... etc.

No fundo, a chamada «democracia americana» não é mais do que a contabilização dos «votos dólares»: quem conseguir mais apoios financeiros, pode comprar mais espaço publicitário em redes de tv, rádio, jornais... consegue mobilizar mais caravanas eleitorais que trilham todo o país... 
Eu não estou a exagerar, não tenho intenção, nem preciso de o fazer. O leitor pode inquirir por si próprio; verá que as coisas são assim, ou em ainda maior escala
Estas considerações poderão chocar as pessoas que, na «velha Europa», acreditam na existência dum único modelo de «democracia ocidental». 
É verdade que, nos últimos tempos, as campanhas eleitorais no lado de cá do Atlântico, começam a assemelhar-se, às campanhas eleitorais no país do Tio Sam. Ingenuamente, as pessoas poderiam pensar que isto é meramente «uma questão de modas». No entanto, estarão enganadas: a democracia / «poder do povo», não é compatível com a democracia «do dólar» (ou «do euro»). 
Esta divergência tem raízes religiosas/morais/históricas muito profundas.

Às colónias britânicas da América do Norte, aportaram no século XVII e seguintes, os puritanos, que eram reformados calvinistas, vindos principalmente de Inglaterra e mas também de outras terras europeias (Holanda, França, Alemanha...). 
A teologia calvinista caracteriza-se pela doutrina da predestinação. Segundo esta doutrina, Deus escolheu, no início da Criação, os humanos todos - até ao fim dos tempos - destinados a serem salvos e os que estavam, de antemão, condenados. Podemos sorrir, hoje em dia mas, nessa época de sectarismo e fanatismo religioso, as pessoas calvinistas acreditavam totalmente nesta doutrina. 
Elas ficavam muito inquietas e desejosas de saberem se faziam parte das «escolhidas», das salvas, indo para junto do Criador, ou se estavam condenadas. Nesta angústia, vislumbravam os sinais que permitiam identificar quem era, ou não, «escolhido». Assim, uma pessoa bem sucedida nos negócios era, certamente, um «eleito do Senhor», segundo esta visão. 
Esta mentalidade, que perdura na elite do dinheiro nos EUA de hoje, forneceu o enquadramento mental e ideológico mais favorável ao capitalismo nascente, por comparação com a Itália ou a Península Ibérica, católicas. 
Com o andar dos tempos, as pessoas (mesmo as não-crentes) mergulhadas nesta cultura calvinista/puritana, passaram a assimilar sucesso financeiro, a ter uma benção. Se alguém possui muito capital, é sinal de que é um eleito, um escolhido por Deus e - por isso mesmo - favorecido nos negócios e em todos os aspectos da vida. Ter riqueza é sinal claro e evidente de ter virtude, pois foi escolhida por Deus. 
Ser rico é uma virtude (nos EUA). 

Nessa época, nos países católicos, igualmente fanáticos à sua maneira, a relação com a riqueza estava marcada pela visão teológica medieval, associando a abundância de bens materiais, com o luxo, o pecado ... Na Europa católica, o rico é temido e invejado, mas não amado ou respeitado. Considera-se que ele pode ter adquirido a sua riqueza por meios legítimos, ou não. Nos países católicos, há muita inveja em relação aos ricos: é frequente ouvir-se dizer mal de alguém, insinuando que obteve sua fortuna por meios «pouco honestos». 

Não nos devemos espantar se nos EUA, em vez do lema «um homem, um voto», o que vigora - na realidade - é a equação «um dólar = um voto». Isto é um facto tão banal, que não choca quase ninguém. 

Para a mentalidade do europeu, as palavras «democracia» e «eleições» têm significados totalmente diferentes, em relação às mesmas expressões, nos EUA.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A REVOLUÇÃO LUTERANA TERÁ SIDO A MAIS IMPORTANTE DA MODERNIDADE

Não é em vão que coloco a hipótese do título:  A REVOLUÇÃO LUTERANA TERÁ SIDO A MAIS IMPORTANTE DA MODERNIDADE.

A cultura atual é sobretudo uma cultura que despreza o sacro, os assuntos de religião, mesmo entre aqueles que intelectualmente ainda se dizem possuir religião. 
Por isso, é bastante difícil fazer compreender aos contemporâneos que Lutero, ao abrir a Bíblia, lê-la e interpretá-la, ao traduzi-la em alemão, língua vernácula, não tem paralelo em importância na história das ideias do nosso tempo. Sim, ele foi contra o papado dessa altura, mas nisso não foi único, não foi o único que se rebelou contra os privilégios do clero, que os denunciou. Jan Hus, Zwingli e muitos outros antes e depois dele, fizeram-no nos termos mais enérgicos. 


Porém, aquilo que ele faz quebra a ideia de que o indivíduo apenas pode se aproximar de Deus sob a condução da igreja instituída, sob a orientação do poder eclesiástico, o qual se confunde com o poder temporal, nesse momento do fim do século XV e princípios do século XVI. 

Nessa época, também, os reis de Portugal estavam empenhados em continuar e aprofundar uma expansão do poder régio, por terras então desconhecidas (para os europeus ocidentais). Os «descobrimentos» portugueses e espanhoís, foram uma enorme abertura ao mundo, foram uma transformação brutal nesses países colonizados a ferro e fogo, uma acumulação de riquezas que iniciou a era capitalista na Europa, etc. 
Mas o facto de que a Escritura pode ser lida, pode ser ponderada e meditada por todos os que saibam ler e escrever, mudou a própria concepção do que seja o ensino. O escolástico ou académico típico passou a englobar no seu estudo a análise criteriosa das fontes, a discutir o rigor das traduções, etc. 
O legado do luteranismo, como ramo da religião cristã, sendo rico e contraditório, não o pretendo ter avaliado aqui. Apenas desejo sublinhar a enorme importância da ruptura operada por Lutero, uma ruptura, muito para além dos aspectos institucionais da Igreja, das relações com o poder civil, etc. Uma ruptura que, sendo essencialmente espiritual, sendo baseada num desejo de maior fidelidade à Escritura, vai arrastar múltiplas consequências: 

- O Iluminismo, em grande parte, nasce em consequência da Reforma, pois esta coloca como questão fundamental que a Bíblia tem que ser um livro aberto, um livro que os olhos e espírito do crente podem e devem ler, sobre o qual ele deve meditar, seria e constantemente. A Natureza, dirão os Iluministas, é um livro aberto também e Deus deu-nos a capacidade de conhecimento e temos de exercitá-lo estudando a Sua Obra, que é a Natureza.

- O princípio da educação popular, já não é apenas bom para o povo saber ler e escrever. É mesmo uma missão dos soberanos luteranos espalharem ao máximo a educação, por forma a que o povo tenha pleno acesso à leitura da Bíblia. Não foi com considerações materialistas, utilitárias, que as escolas para o «povo miúdo» foram fundadas, mantidas e expandidas. Foi na base de uma noção teológica, de criar as melhores condições possíveis para os súbditos aprenderem a Palavra de Deus. 
Nos países católicos, pelo contrário, a instrução elementar era tida como conducente a atitudes sediciosas, a questionar a autoridade: só uma pequena minoria, privilegiada social e economicamente (ou não, mas destinada ao baixo clero) tinha acesso a aprender a ler e escrever. A elevada taxa de analfabetismo continuou como uma chaga durante vários séculos, até bem dentro do século XX, no Sul da Europa [Portugal, Espanha, Itália (do sul)...]

- O princípio da liberdade religiosa; a fé cristã é afirmada com rigor nos países do Norte da Alemanha e Escandinávia, a versão luterana da mesma é abraçada pelos monarcas, aristocracia e altos funcionários, mas não se vê uma conversão forçada, na generalidade dos casos, não se vêem perseguição e autos de fé, como em países católicos, com a Inquisição, que condenaram muitos intelectuais à fogueira por «ideias protestantes, heréticas». 
A liberdade religiosa permitiu, mais tarde, a liberdade política; apenas depois de ser admitido que se poderia ser leal ao soberano, apesar de não se professar a mesma religião ou confissão, se tornou aceite que a dissidência política não era sinónimo de traição à pátria. 
Isso demorou muito tempo a ser aceite, mas veja-se que os países com melhor e mais longo registo de liberdade política, também são os que tiveram maior tolerância em termos religiosos, entre eles os de confissão luterana maioritária.

Evidentemente, muito do que aconteceu em 600 anos, foi devido a enormes forças sociais que se desenvolveram, mas certos acontecimentos da vida intelectual, como o pregar as 95 teses na porta da Universidade de Wittemberg, assim como a Bíblia traduzida para o alemão por Lutero, têm uma marca simbólica muito grande. 

Como acontecimento intelectual, só consigo encontrar paralelo no «De Revolucionibus» o célebre tratado de Copérnico, que desencadeou uma controvérsia científica, a qual foi desde cedo «misturada» com argumentos teológicos.

Em Portugal, alguns espíritos, apesar da Inquisição, ousaram estudar as teses luteranas. 
Um deles, Damião de Goís, teve a audácia de falar com o próprio Lutero e seus adeptos. 

Ele era um diplomata, um cronista (historiador) do Reino, alguém com cargos oficiais. Isso foi a sua proteção, pois quando foi denunciado ao Santo Ofício, não terá sido violentamente interrogado; mas não deixou de ser condenado, de sofrer prisão e humilhação, por ter encetado o diálogo com luteranos. 
Goís, provavelmente, era um erasmiano ou seja, advogava uma reforma por dentro da Igreja, sem ruptura.