Mostrar mensagens com a etiqueta sociedade. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta sociedade. Mostrar todas as mensagens

domingo, 3 de dezembro de 2023

SE ESTAMOS A VIVER NUMA ÉPOCA EXCECIONAL...

 Se estamos a viver numa época excecional, então devemos cuidadosamente rever todos os conceitos aos quais estávamos mais ligados. Devemos analisá-los criticamente, à luz das realidades emergentes e ver quais os que podem ser resgatados, quais devem ser reformulados e quais os que devem ser «deitados para o caixote de lixo».

Quando reflito sobre isto, a minha mente é imediatamente atraída pela palavra «contenção». Com efeito, as circunstâncias gerais, em cada sociedade e cada vida privada, tornaram-se de tal maneira voláteis, que nós devemos nos interrogar sobre a nossa «grelha de leitura» da realidade. 

Com efeito, os parâmetros que considerámos para avaliar a realidade  social, aqueles sobre os quais nos baseámos no passado, até mesmo no passado mais recente, ou se tornaram obviamente caducos, ou têm de ser reformulados, no todo ou em parte. 

As pessoas que não façam esse exercício, irão sofrer, nas condições de instabilidade e perturbação profunda que agora se estão a revelar. Elas irão  ser arrastadas/induzidas a tomar posições sobre as quais não tinham refletido previamente. 

Assim, em todos os aspetos da vida,  deve-se ser particularmente cuidadoso, não tomar os desejos pela realidade, não pronunciar juízos definitivos, sobre aquilo que parece ser, no momento. 

Dito isto, é verdade que as escolhas que fizermos poderão ser decisivas para nós, pessoalmente e socialmente. O que vi acontecer com muitos, é que tentam «encaixar» as inéditas situações, no molde envelhecido das suas ideologias. Seria este um caso para evocar a parábola bíblica do «vinho novo, em odres velhos».

As novas situações não têm «resposta» em escritos de filósofos, políticos ou economistas, que pensaram e escreveram em contextos totalmente diversos da atualidade. A única coisa de que podemos ter a certeza, é que não existem, em sociologia, economia, ou história, teorias preditivas verdadeiras, genuínas. As que são formuladas, correspondem apenas à visão do Mundo e ao desejo dos seus autores. Ora, esta visão do Mundo, mesmo que fosse muito adequada quando a escreveram, não poderia ter em conta toda a panóplia de descobertas e de ideias que se desenvolveram, entretanto. 

Num período de crise, como dizia corretamente Lenine, há semanas que são tão densas em acontecimentos, que parece que passaram anos. Esses acontecimentos são imprevisíveis no seu desenrolar. Mesmo que sejam previsíveis no seu desencadear. Por exemplo: uma guerra, pode ser previsível, ao se analisar as posições e movimentos das diversas potências. Mas, ninguém pode prever que uma tal guerra futura se desenrole desta ou daquela maneira. Que dure apenas uma semana, ou dez anos. Que dê a vitória inequívoca a um dos lados, ou que se arraste e esgote o lado mais forte. Que o lado mais forte inicialmente, mesmo que vença militarmente, acabe por experimentar o princípio da sua derrocada.

As situações de imprevisibilidade nos mercados são ainda mais patentes. Os que «pilotam» os bancos centrais, munidos de poderosos instrumentos para agir sobre mercados financeiros e a economia geral, não têm o poder que se lhes empresta. São o aprendiz do conto do «Aprendiz -feiticeiro». As economias vivem sujeitas ao caos completo, onde sábias e prudentes decisões são impossíveis de tomar. Os dirigentes efetuam meros «passes de mágica», de tal modo que o vulgo acredita que eles detêm enorme poder. 

A atitude mais inteligente - neste contexto- é de garantir aquilo que nós, pessoalmente, a nossa família, a nossa comunidade, possuímos enquanto meios de preservar a vida. Manter e aumentar a nossa capacidade de aguentar nos tempos mais difíceis das nossas vidas, deveria ser a preocupação primeira.  As «sereias» que apelam para investimentos sumptuários, especulativos, que causam um desequilíbrio, ou que diminuem os ganhos e as hipóteses de ganho, são de rejeitar. Por contraste, as iniciativas para preservação do adquirido e para o aumento da nossa autonomia (exemplos: produção própria de alimentos, geração de energia, etc.) tornam-se vitais, neste contexto. Também importa uma atitude mais racional com a saúde: a boa condição física é ainda mais importante, nas circunstâncias em que colapsam as estruturas e os meios de saúde.

A nossa energia deve estar centrada nos pontos acima, sendo também muito importante não olharmos de forma acrítica para as informações que nos chegam aos ouvidos ou aos olhos. Neste contexto, a informação da mídia é mais enviesada do que nas situações anteriores. Estamos perante ondas sucessivas de condicionamento de massas, primeiro com a histeria do «COVID», depois com a violação sistemática da nossa integridade, a imposição de «vacina», a perseguição da dissidência e a instalação duma censura férrea, além de uma vigilância total. Esta fase antecedeu e preparou as pessoas para aceitarem - perante as guerras da Ucrânia e de Gaza - no meio de campanhas de histeria sucessivas, a transformação do enquadramento legal.  A «legalidade democrática» foi varrida de uma penada, para se reprimir "legalmente"  dissidências e glorificar o bárbaro esmagamento de populações civis, incluindo a ressurreição do conceito, medievo e nazi, de  «culpa coletiva».

Com o medo instilado, pretende-se que as pessoas deixem de pensar, apenas reagindo, apenas seguindo os instintos de gregarismo e de xenofobia. Muitas, adotaram um comportamento de simulação, ou ocultaram a sua posição verdadeira, por medo de serem excluídas, de serem apontadas a dedo. 

O cenário está completamente montado e, aliás, a peça de teatro já começou a desenrolar-se diante dos nossos olhos. Mas, como não compreendemos o enredo desta peça, nem queremos fazer um esforço para o compreender, somos incapazes de protagonismo, de sermos proactivos. 

Se algo de verdadeiro existe nas palavras acima, creio que devemos refletir como agir para modificar este estado de coisas. Para agir maduramente, não devemos ocultar a realidade a nós próprios, nem cair na armadilha da propaganda, de uns ou de outros. Precisamos ser capazes de nos distanciar sem trair as nossas convicções. Não devemos tomar a nossa ilusão, o nosso desejo, pela realidade. Sobretudo, devemos guardar abertura a cada momento; não desenvolver sentimentos de ódio, em relação aos que estejam no polo diametralmente oposto. Sermos adultos, propriamente, quer dizer que somos capazes de analisar e não descartar outros pontos de vista, que nos pareçam - à primeira vista - errados, ou equivocados; por vezes, nós é que estávamos equivocados e os outros  tinham - afinal - razão. 

De nenhum modo, uma atitude sectária se justifica, neste contexto: A atitude inteligente é realizar alianças, o mais amplas possíveis, aos vários níveis. 



segunda-feira, 27 de novembro de 2023

INSTINTO DE CANÍDEO [OBRAS DE MANUEL BANET]




Eu aprecio os seres humanos. 
- Sim, eu que nem sou humano, apenas um canídeo dentro dum corpo humano. Ser canídeo é algo concreto; é seguir o instinto e confiar no bom-senso rude dos sentidos. Não me falem de «cínicos», pois estes filósofos apenas pretendiam ser cães. Eles atribuíam aos cães, características humanas. Se eu bem entendi «ser cínico» é tudo, menos ser cão. O cão é que dá lições de ética aos «cínicos» e aos outros filósofos.
O cão vive no imediato. Confia nos seus instintos e não tenta enganar os outros, da sua espécie, como fazem muitos humanos. Um cão está sempre atento ao dono, observa-o com a maior atenção. De facto, não possui uma filosofia e não precisa. A sua «filosofia», não é filosofia nenhuma: é seguir a Natureza.

O ser humano afastou-se da Natureza; todos os humanos que queiram reatar com Ela, refazer a ligação quebrada, custa-lhes um grande esforço. Podem não conseguir fazê-lo: Podem estar convencidos de que reataram esta união, mas estarem autoiludidos.
Os humanos, em geral, são olhados com medo e estranheza pelos animais não domesticados. Não acredito na bondade do género humano. Há pessoas concretas que são boas, genuinamente boas. Mas se o são, não é apropriado dizer-se delas, que sejam «humanas».
Já agora, direi o que penso sobre os humanos e a humanidade, essas infelizes criaturas que surgiram - quase por acidente - há uns trezentos mil anos: Vejo-os como animais bípedes, que se tomam por algo especial e se julgam donos da Terra. Estes infelizes, nos últimos tempos, só sabem colocar em risco o Planeta. Afinal, eles são símios degenerados, drogados, enfermiços da cabeça. Basta ver como eles se dedicam a 'serrar o ramo em cima do qual estão pousados'.

Os canídeos têm um código de conduta muito claro. E, ai daquele que não cumpra seu dever! Todos estão plenamente conscientes dos valores morais e éticos da sua espécie. 
Existem várias espécies sociais, não- domésticas, como os lobos, os coiotes, os chacais. Todas elas são exemplos notáveis de mamíferos sociais. Como, aliás, diversas espécies de símios, em particular, os antropoides: chimpanzés, gorilas, orangotangos, etc.
Quem estuda etologia, sabe que as espécies sociais - naturalmente - têm um código comportamental rigoroso, orientado para a sobrevivência e coesão social do grupo a que pertencem. 
Embora me tomem por um ser humano, tenho essa aparência, não tenho - porém- orgulho nisso. Realmente, as sociedades animais são muito mais aperfeiçoadas que as humanas, em qualquer época. 
Note-se que o bando, a manada ou a alcateia, são estruturados de tal maneira que, não só criam as condições de existência aos indivíduos, como maximizam as interações positivas entre eles, e com o ambiente.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

CONTROLA OS SEUS IMPULSOS?

 O comércio joga com os impulsos das pessoas  para comprarem. O estímulo para comprar está disseminado em toda a sociedade. É que na sociedade da mercadoria, onde tudo se compra e vende, o ato de comprar é assimilado a duas coisas, no inconsciente:

A - Um prazer sensual, análogo à fase oral/anal da psicologia freudiana. 

Com efeito, a adição de compra compulsiva  é uma patologia muito séria e mais banal  que outras adições que não envolvam ingestão de «drogas». Mas, o sistema de escravização do consumidor consegue desenvolver técnicas para o aumento de sua adição. 

Por exemplo, as luzes e decorações de Natal nas ruas, nos centros comerciais e nas montras: São, afinal, a criação de um ambiente «feérico» que faz as pessoas quererem voltar à infância e deixarem-se arrastar por impulsos de consumo. Este impulso pode ser motivado por desejo de satisfazer entes queridos (o Natal como festa da Família), mas também aqui se trata de uma relação falseada, porque mediada pela mercadoria. Em geral, quer em ocasiões «normais» ou «especiais», o impulso obsessivo de comprar, desencadeia compras inúteis, que desequilibram o orçamento pessoal.

B- Um símbolo de status; por isso é que bugigangas produzidas em série, são publicitadas como algo «exclusivo». De facto, a adição às compras é cuidadosamente cultivada pelos órgãos de  comunicação social de massas, cujos rendimentos são resultantes da publicidade, sobretudo. 

O contexto da sociedade mercantil hipervaloriza a aquisição e acumulação de objetos: As pessoas têm uma relação doentia com a posse de certos objetos, em especial se forem caros, de luxo, de «prestígio». 

Os objetos a que me refiro, não são adquiridos por necessidade ou conveniência, são como um «investimento» afetivo e promocional. 

- Auto-Afetivo, porque as pessoas (simbolicamente) estão a remunerar ou a recompensar, a si próprias.

- Auto-Promocional: Ao exibirem algo ostensivamente caro. Esses itens - mesmo que sejam de pouca ou nenhuma utilidade - estão a exibir a  elevada capacidade aquisitiva de seu possuidor.



Numa sociedade onde a aparência é tudo, onde  ser economicamente bem sucedido, é ser uma «celebridade» e passar a fazer parte da «elite», mesmo que seja de maneira efémera, as pessoas não conseguem amadurecer o seu ego. Permanecem bloqueadas nos afetos infantis, tanto no que respeita à «gula» de compras, como à gula de comida. 

Repare-se nas seguintes situações:

- A epidemia de obesidade (sobretudo, nas camadas menos abonadas), 

- A atitude hedónica, não apenas de adolescentes como de adultos (= adolescentes mentais),

- O crescente número de pessoas que ficam endividadas em excesso, usando cartões de crédito, 

Todos estes (e muitos mais), são exemplos bem visíveis de patologias sociais. Todos são característicos da chamada sociedade de consumo. Por contraste, as características acima não se observam nos períodos históricos anteriores à revolução industrial, ou nas sociedades que - ainda hoje - subsistem fora do modelo dominante.

A alternativa não reside na pobreza voluntária, ou noutro tipo de autoflagelação, para combater os males sociais. É fundamental educar-nos e educarmos as jovens gerações, para não cairmos no ciclo infernal do «consumo pulsional». 

Além disso, temos de compreender que as soluções boas para o ambiente, para a sustentabilidade da biosfera e para uma sociedade harmoniosa são incompatíveis com o capitalismo

É um facto, que o capitalismo precisa do sobre- consumo desenfreado. Por muito que mostrem preocupações «ecológicas» e «socialmente responsáveis», os comerciantes e os industriais só são verdadeiramente movidos por uma coisa, o lucro.

Não é de admirar, pois o modelo de economia e sociedade capitalista, é exatamente aquele que endeusa o indivíduo que enriquece, seja lá por que meios for. Desde que seja rico/a, é uma pessoa interessante, inteligente, etc. Portanto, as pessoas - mesmo que não sejam comerciantes ou industriais - são fortemente encorajadas a procurar enriquecer-se, sem olharem demasiado aos meios. 

A ostentação, o consumo de luxo, o consumo hedónico, são o símbolo e o triunfo desejado pela maior parte das pessoas, dentro do  modelo económico e social capitalista.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

GOYA E O SONHO DA RAZÃO, REVISITADOS

 


As pessoas são alimentadas, ao longo da vida, por narrativas lineares. A ideia de que as sociedades e a tecnologia vão ser «mais isto ou aquilo». É muito divertido observar as publicações de magazines populares, que estimavam há cem anos atrás (ou menos), «como seria o futuro»: É um lugar-comum verem-se automóveis que também voavam, ou pessoas a viverem em apartamentos cheios de gadgets, embora as coisas que eram imaginadas, há várias dezenas de anos, como fazendo parte dos confortos da «modernidade», ou nunca se concretizaram ou, se vieram a existir, são de uma forma substancialmente diferente.

Sociologicamente, também, as projeções do futuro são lineares; há o alargamento - a quase generalização - do modo de vida do tipo «classe média», uma população de engenheiros, doutores, cientistas, profissões de elevado prestígio. É costume as pessoas projetarem os seus desejos no futuro. Mas é singular haver tão fraca imaginação, uma incapacidade, incluindo nos «futurologistas», em decifrar no presente aquilo que serão as linhas de força da próxima década, já para não falar do próximo século. 

As pessoas estão muito cientes de «verdades» que lhes foram transmitidas por inúmeros canais, a maior parte, sem relação nenhuma com a realidade das coisas. Mas, mesmo quando fazem um esforço genuíno para projetar as tendências observáveis no presente em direção ao futuro, incluindo o mais próximo, a regra é errarem redondamente. 

Assim, deveríamos estar completamente abertos a todos os campos de hipóteses, aquelas que conseguimos vislumbrar e mais ainda aquelas de que não fazemos a mínima ideia, no presente. 

Por vezes, tais  são as transformações, que as pessoas ficam completamente desnorteadas. A nossa mente é feita para apanhar a tendência dominante, projeta-la no futuro e construir a realidade a partir destas projeções. 

Mas, os fenómenos complexos ultrapassam - em muito - as capacidades de os equacionar, mesmo que sejamos «génios». Os fenómenos não se submetem a uma lógica linear. Linearidade ou «lei estatística» é o que a nossa mente gostaria que fosse. O nosso inconsciente está sempre a procurar a conformidade, porque é algo que nos tranquiliza, nos dá uma sensação (ilusória) de continuidade. Não somos feitos para incorporar o  insólito, o estranho, o irracional no nosso mundo. Assim, estamos com frequência de pé atrás face à novidade, sobretudo se tal novidade vem contradizer as «certezas», que nós julgávamos eternas.

Os ilusionistas, os demagogos, servem-se sistematicamente do efeito de «normalidade», que está tão arreigado no nosso psiquismo. Este efeito, é uma das principais fontes de equívocos, de avaliação errónea dos dados ao nosso dispor. 

Os sentidos podem ser facilmente «iludidos», mas note-se que eles não são a fonte da ilusão, do equívoco, nem tão pouco, a natureza exterior do que eles veiculam: Afinal, as ilusões ditas dos «sentidos», são antes ilusões da interpretação cerebral das imagens ou sons, etc. que nos vêm pelos sentidos.  Mesmo a imagem que seja «ambígua» à partida, não o será, de verdade: 

- Somos nós que construímos, com aquilo que recebemos dos sentidos, uma certa interpretação ou a descartamos, no momento seguinte, por outra, que nos pareça igualmente coerente. É sempre a reconstrução da imagem que fazemos no cérebro, que  desencadeia a interpretação ambígua. A imagem em si mesma, as manchas de cor e de sombra, os contornos, etc.,  são o que são. Não mudam: É o nosso dispositivo cerebral que é tomado pela interpretação ambígua. 

Porque razão continuamos iludidos, sabendo como é fácil nos ilusionarmos, sabendo também que as ilusões ou miragens, resultam de certa visão que nós próprios damos às coisas, não das coisas em si mesmas. 

Se fizermos uma reflexão profunda sobre a falibilidade dos sentidos e dos juízos que (conscientemente, ou não), fazemos a partir destes, é possível atingir o primeiro grau da sabedoria: 

- A nossa própria psique é que nos engana, na maioria das vezes. Não fazemos a análise adequada das informações que nos chegam pelos sentidos. Assim, somos nós próprios a fonte os enganos.

Se extrapolarmos para o domínio da vida política, económica, etc. verificamos que evoluímos como crianças que se enganam a si mesmas, julgando ver o objeto real no seu mero reflexo, estando convencidas de que a ausência de algo, significa que esse algo não exista realmente, etc.

Temos de reconhecer que, por muito «racionais» que nos consideremos, a maioria das pessoas vive fora da realidade. A realidade é reduzida à imagem distorcida, limitada da mesma. 

Por isso, não considero que exista um fosso intransponível entre o «patológico» e o «normal». De facto, as pessoas estão sempre a tomar os seus desejos por realidade. E quanto à pessoa doente mental: Está ela sempre «fora da realidade»? Mas o que é a realidade? Eu  tenho impressão que, em vez da realidade inteira, é «entronizada» a ideia comum que as pessoas têm da realidade. 

Pode uma mente genial ver aquilo que as pessoas vulgares não conseguem ver; pode também uma pessoa perturbada mentalmente ver algo que as outras não vêm. Mas, quem decide o que é lúcido e não lúcido? Realmente, é muito difícil estabelecer a fronteira entre o normal e o patológico. A História mostra-nos, vezes sem conta, que pessoas, perfeitamente ajuizadas, emitiram hipóteses, ou teorias, que foram descartadas como extravagantes ou pior, inspiradas pelo demónio. Mas, na verdade, eram perfeitamente racionais e lógicas. A sociedade, ao fim de algum tempo, terá assumido tais «elucubrações» como a coisa mais normal deste mundo.

A nossa neotenia abre-nos a porta dos possíveis. A nossa necessidade de proteção, de segurança, fecha essa mesma porta.  A criança que tem medo, tapa os olhos com as mãos, para não ver. A sociedade, ao longo dos tempos, tem feito o mesmo. Tem sido tentada por mundos desconhecidos, que lhe batem à porta; em simultâneo, tem sido afugentada pelo medo do desconhecido, das trevas cheias de monstros, de emanações fantasmagóricas dos nossos próprios medos.

  

 

domingo, 5 de fevereiro de 2023

INDIVÍDUO / COLETIVO

O título apela a uma oposição, a qualquer coisa irredutível, na essência. Porém, se este é o modo de pensar e de filosofar de muitos, não é o meu! Embora aceite que eu possa ser influenciado por uma sociedade e um discurso dominantes, que se caracterizam por um pensamento dicotómico, simplificador. Porém, as propriedades imensamente complexas do social e do histórico entrelaçam-se para produzir algo totalmente inédito, em termos de evolução biológica.
 
O que os humanos têm feito ao longo da sua breve existência (como espécie, uns meros 300 mil anos), mas imenso tempo, em termos de memória humana (as primeiras civilizações surgem apenas há pouco mais de uns 10 mil anos), não tem sido senão depredação do seu ambiente. A «revolução agrária», iniciada há mais de 10 mil anos, implicou uma radical transformação, não apenas do modo de produzir e consumir alimentos, passando da caça-recoleta, para uma produção agrária, mas também a destruição de ecossistemas naturais, sobretudo na orla do mar Mediterrâneo, onde apenas restam alguns vestígios do que foi a floresta mediterrânea primitiva, vasta zona produtiva natural, que tinha uma diversidade notável, em termos de flora e fauna, zona temperada e de clima não demasiado seco. Veja-se que vastas áreas, como a Anatólia (Turquia), Síria e Levante, assim como Norte de África, não eram formadas por desertos ou semidesertos, como hoje. Eram zonas muito propícias para a caça e coleta e para a agricultura. Porém, a construção de impérios diversos na antiguidade extinguiu estes ecossistemas frágeis. Por exemplo, havia, até aos tempos históricos, leões nessas zonas; muitos documentos escritos e pictóricos atestam-no. Mas, estes superpredadores precisam de uma fauna de herbívoros, como gazelas, etc. Por sua vez, os herbívoros que aí viviam precisavam de condições mínimas para sobreviver; precisavam de alguma humidade, de fontes de alimento abundantes ao longo do ano, etc. Portanto, temos uma ideia muito clara de como eram os habitats naturais, no início da «revolução agrária» e sabemos que permitiam uma diversidade biológica muito maior do que as zonas áridas e desérticas, que constituem uma boa parte do entorno do Mediterrâneo, nos nossos dias. A transformação de vastas áreas em desertos ou semidesertos, terá tido contribuição humana, com a sua destruição dos ecossistemas, usando a caça muito para além das suas necessidades. A destruição dos habitats naturais pelo fogo, foi realizada pelos primeiros agricultores, para aí fazer crescer plantas agrícolas. Este comportamento humano foi causador de catástrofes ambientais, desde as civilizações mais antigas conhecidas.

O sucesso da linhagem humana (pelo menos, o género Homo), enquanto tal, mede-se, sobretudo, pela sua expansão para lá dos limites geográficos que foram as suas zonas geográficas iniciais de África e depois também a orla do Mediterrâneo. Mas, essa expansão ocorreu repetidas vezes, houve várias saídas para fora de África. Ocorreram mesmo com espécies anteriores aos humanos modernos, há mais de um milhão de anos, como no caso dos Homo erectus, que se disseminaram na Ásia. Porém, não devemos ter uma imagem idílica destes períodos, pois os efetivos totais da Humanidade, em qualquer momento deste período muito longo, não devia exceder uns parcos milhares.

Algumas pessoas têm uma visão pessimista (Malthusiana) da espécie humana e da dinâmica populacional no nosso planeta, porém esta visão enferma de um grande simplismo. Primeiro, há sinais de diminuição clara da natalidade, acompanhada de envelhecimento geral, nas sociedades mais afluentes, quer sejam europeias, americanas ou asiáticas. Segundo, as restantes zonas do globo experimentam evolução demográfica semelhante à da Europa, desde a revolução industrial, com uma expansão demográfica muito elevada no início, até se chegar aos dias de hoje, com taxas de reprodução inferiores às de reposição da população (cerca de 2,1 bebés por mulher fértil). Os países ditos do «Terceiro Mundo», que saíram do marasmo do subdesenvolvimento, tiveram um decréscimo natural dos nascimentos. Na verdade, o que os demógrafos temem não é a «bomba populacional», no sentido dos que profetizam - como Malthus - um crescimento populacional indefinido e superior à capacidade de sustentação da Terra, enquanto ecossistema global. Mas, uma catástrofe demográfica no sentido contrário, ou seja, uma diminuição da fertilidade, em paralelo com o aumento da longevidade, o que vai tornar difícil de perpetuar e de gerir uma sociedade como a que conhecemos, com os benefícios sociais que muitos dão como adquiridos, mas que pressupõem um sistema económico capaz de sustentar um certo modelo social.

Aquilo que se chama «condição humana» ou ainda «natureza humana», não é algo fixo, estático. Embora a nossa história biológica passada deixe as suas marcas nos corpos presentes e mesmo nos modos de organização presentes das sociedades humanas, nada deve ser dado como definitivo.

A espécie no seu todo e cada uma das populações humanas que a constituem, estão em permanente evolução. Podemos dar muitos exemplos de frequências de versões de genes (alelos de genes) que foram aumentando, ou diminuindo, nas populações ao longo dos tempos históricos: São mesmo muitas, as modificações sensíveis e com efeitos notórios no modo de vida dos contemporâneos. Os genes estão sempre a sofrer mutações; aqueles que são transmitidos à descendência, ao longo de gerações sucessivas, costumam conferir um coeficiente de sobrevivência positivo e serão conservados. Porém, certos genes podem ser deletérios num determinado contexto e serem benéficos, noutro. Mas, ao nível da população, a variedade genética é essencial. Temos uma diversificada capacidade de resistência inata aos agentes infeciosos. Esta resistência à doença por um certo agente infecioso, é - em geral - muito elevada quando, durante longos períodos, a população foi confrontada com esse agente, um efeito de seleção darwiniana típico.

A tecnologia das sociedades humanas cria situações novas, às quais as populações e os indivíduos respondem. Há aquisição cultural de muitos comportamentos, mas há também a extinção de outros. Esta evolução cultural é muito mais rápida que a evolução biológica. Tipicamente, deve-se contar com um lapso de tempo da ordem da dezena de milhares de anos, para uma população sofrer uma variação significativa (diminuição ou aumento) da frequência de genes, em consequência de mudanças ambientais. Isto é válido para a espécie humana e para as outras espécies estudadas.

Mas, a alteração do comportamento, que pode inclusive implicar a mudança radical no modo de vida da população, pode verificar-se no espaço de uma geração, ou até de menos. Por exemplo, os nativos da Amazónia, mais próximos de comunidades vindas de ambientes urbanos, adotaram um novo estilo de vida, abandonaram o modo de vida de caça e coleta. Poderia argumentar-se que houve uma intervenção, por vezes violenta, para coagir estes povos. Mas, isto aconteceu - também - quando as populações indígenas não foram sujeitas a tal coação. Escolheram adotar um outro modo de vida; mas elas seriam deixadas viver como os ancestrais, se assim o desejassem.
O mesmo padrão ocorre noutros casos, em populações ainda não integradas no modo de vida industrial, tais como as populações nómadas, etc. Em todos os casos estudados, a «aculturação», seja com ou sem aspetos de coação sobre a população, tende a ser muito rápida. A mudança de um modo de vida para outro, corta a população de certos saberes, separa os indivíduos e as comunidades de certas tradições: Pode-se lamentar isso, mas não se pode impedir que os povos escolham a forma de vida mais conforme com as suas aspirações.
No polo oposto, no seio de sociedades industrializadas, assiste-se à profusão de «subculturas». Estas, por vezes, duram somente uma geração (ou menos) mas, noutros casos, evoluem de forma autónoma e fixam-se como subconjunto estável. O processo de fracionamento nas sociedades industriais «maduras» é tal, que acaba por funcionar como contrapeso à tendência homogeneizadora nas mesmas sociedades.

Portanto, «a natureza eterna e imutável da humanidade», é apenas um efeito de ótica, de se observar uma estreita faixa da humanidade, no tempo e no espaço.

É o preconceito que nos leva a imaginar um psiquismo semelhante ao nosso, quer em civilizações ou culturas muito anteriores, quer nas contemporâneas, mas que estejam mais distantes culturalmente da nossa. Temos um modelo implícito, assumimos que tal modelo é generalizado, para além da nossa vivência singular, enquanto indivíduos participantes numa dada sociedade.

Não somos uma espécie individualista típica, como é o caso de algumas espécies animais que evitam a «mistura» com outros de sua espécie, excetuando no acasalamento: os felinos selvagens têm esse comportamento, na maioria das espécies.
Em muitas espécies, a participação do macho para a descendência é o mínimo que se possa imaginar. Quanto à fêmea, esta acasala, dá à luz e depois cria os filhotes, essencialmente sozinha. No polo oposto, temos diversas espécies de símios, incluindo símios antropoides, símios sem cauda incluindo o gorila, o chimpanzé, o bonobo e outras. São animais sociais, constituem bandos, têm uma hierarquia que não é rígida, pois está sempre a ser contestada, têm um comportamento de grupo no dia-a-dia. São animais que se poderia chamar de «naturalmente coletivistas». Nós somos oriundos da grande família dos símios antropoides, mas não somos tão rigidamente determinados no comportamento coletivista, como estes.

Assim, a contradição entre individualismo e coletivismo deve ser equacionada no tempo mais longo, no da evolução biológica. A adaptabilidade intrínseca da espécie humana é considerada, por muitos, ser resultado da evolução por neotenia*. A adaptabilidade permite que a nossa resposta seja mais individualista ou mais coletivista, consoante as circunstâncias. Não podemos - porém - esquecer que somos uma espécie essencialmente social.

Note-se que o criador de Robinson Crusoe percebeu perfeitamente isso. Ele dá como adquirido que o herói, embora consiga adaptar-se a uma vida solitária, está sempre ansiando por retomar o contacto com outros humanos e quando consegue encontrar um humano («Sexta-feira», em inglês Friday), fica muito feliz ; trata-o como companheiro, não como criado ou escravo. Daniel Defoe exprime uma constante da psique humana, que ele bem conhecia, ou seja, que somos feitos para ter um relacionamento social. Sem isso, somos incompletos.

A insistência em ideologias «individualistas» ou «coletivistas» corresponde, de facto, a fracas abordagens da complexidade dos indivíduos e das sociedades.

Não se concebe uma sociedade sem seres humanos individuais e capazes de se auto-determinarem. A sociedade de «robots» é  uma distopia (utopia negativa), não me parece ser um futuro possível. Mas, uma sociedade de indivíduos todos eles separados e isolados uns dos outros, por mais nobres que sejam seus sentimentos e valores, também não é uma sociedade saudável, onde se deseje viver. Esta seria, ao fim e ao cabo, como uma «sociedade» de felinos selvagens, como atrás referi. Mas, não somos felinos, estamos próximos das espécies mais sociais entre os mamíferos, os símios antropoides.

A evolução biológica é muito complexa. Uma característica dela, é que baliza a evolução posterior, nunca ao contrário: Não há verdadeira evolução «regressiva». Não podemos voltar atrás e modificar os antepassados dos humanos, mesmo admitindo que estes por cá andassem ainda, ou que tivéssemos um processo de engenharia genética de os fazer reviver, não só como indivíduos, mas enquanto comunidades.

----
*
Neotenia, a propriedade de haver maturação de órgãos reprodutores e  reprodução efetiva, num estádio larvar. Segundo a «hipótese neoténica» os humanos seriam símios neoténicos, o que explicaria a sua capacidade de aprendizagem ao longo da vida e a sua flexibilidade comportamental, além de traços «fetais» como a escassez de pêlo, a fragilidade muito grande dos recém-nascidos e durante os primeiros anos de vida. A nossa cabeça, mais de acordo com as proporções de um feto de símio do que de um símio adulto,  está no limite do crescimento, face às dimensões da pélvis da mulher, dificultando o parto. O falecido biólogo Stephen Jay Gould foi um dos mais conhecidos defensores da hipótese neoténica para a espécie humana.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

DIÁLOGOS SOBRE O FENÓMENO HUMANO


 Publicamos aqui um primeiro diálogo entre um Paleoantropólogo e uma Geneticista. 

P - Este desafio de falar sobre o humano é tão arrojado e, ao mesmo tempo, inescapável para alguém com a minha profissão. Nas fronteiras do humano, estão interrogações filosóficas quer nós nos debrucemos sobre o passado (evolução humana), o presente (antropologia cultural) ou o futuro (prospetiva). Quanto à ciência genética, que também faz parte das ciências que a paleoantropologia utiliza, o que te parece ter sido mais relevante, no que ela trouxe ao debate constante sobre este tema?

G- Eu sei que o paradigma dominante é - não apenas na genética - de um certo determinismo. Isso traduz-se no imaginário popular, como alguém tendo herdado o gene W, terá uma expressão do gene correspondente. Isto não é válido, como sabemos e os cientistas com certeza todos sabem que isso não funciona exatamente assim mas, ao nível mais profundo, mais epistemológico, há uma crença arreigada na determinação dos genes. 

P- Sim, há a velha e falsa polémica de «genes» versus «cultura», mas que evidentemente não leva a nada pois as coisas não são separáveis. É exatamente como a história de «quem veio primeiro: A galinha, ou o ovo».

G. No campo da genética, costuma-se separar as especialidades moleculares (o estudo dos genes e suas sequências), da genética das populações (como evoluíram as populações, como é que tais ou tais genes e conjuntos de genes se segregaram ou reuniram nas populações, neste caso, populações humanas). Mas, a utilização massiva e mesmo corriqueira de indicadores genéticos (sequências) em populações passadas ou presentes, em muitos estudos, veio agora tornar muito fluida a fronteira do que seja do domínio da «genética  molecular» ou da «genética das populações».

P- No campo da antropologia, a herança de um neo-darwinismo dogmático - que não deve ser confundido com as precoces, mas valiosas, contribuições de Darwin  - contribuiu para uma visão linear da evolução humana, com a agravante de querer que os achados sucessivos se enquadrassem dentro da tal visão estreita de uma «evolução progressiva», tendente a «um tipo perfeito de humano, que seria o Homo sapiens». Dessa distorção resultaram muitos preconceitos, difíceis de eliminar. Por exemplo, a correlação estreita da inteligência com a capacidade craniana, mesmo  estimada na proporção do total da massa corporal. Verificou-se que H. luzonensis e H. floriesiensis tinham capacidade craniana muito menor que os vários exemplares (contemporâneos alguns) de H. erectus, encontrados em várias ilhas do Sudeste Asiático. Ambas as espécies (luzonensis e floresiensis) eram, não apenas fabricantes de instrumentos de pedra, como tinham habilidade de caçar animais perigosos e de porte muito maior; sinal seguro de certo grau de inteligência. Se a correlação entre a massa cerebral e inteligência fosse linear, estas espécies teriam apenas o intelecto de chimpanzés e as realizações destes símios, ou seja, seriam apenas capazes de usar instrumentos «ready made» (pronto a usar), paus e pedras que encontrassem.  

G- As descobertas da genética nos finais do século passado e no  século XXI também foram de molde a destruir algumas falsas verdades, como a universalidade da transmissão mendeliana dos carateres ou a possibilidade de transmissão hereditária de informação «material», por oposição a «cultural», por uma outra via, que não a do ADN. Isto torna caducos uma série de modelos e mesmo de teorias em genética, pois não se baseiam nesta «nova» genética, mas numa genética onde a transmissão dos carateres hereditários se faria estritamente segundo as leis mendelianas e estava exclusivamente codificada nos genes, formados por sequências de nucleótidos. Mas de facto conjugar as recentes descobertas ao nível molecular e celular, com os dados de observação das populações, é muito difícil. A teoria neodarwiniana dos anos 30-60 do século passado fez isso, na chamada «síntese neodarwiniana», porém este modelo ficou caduco, passados poucas décadas depois de ter triunfado. A partir da descoberta dos intrões (anos 1970-80) e  de um conjunto de descobertas que formam a base do que chamamos a epigenética, até então insuspeitadas. Mas, esta «síntese neodarwiniana» fascinou as mentes, ao ponto de muitos cientistas se «agarrarem» a ela, visto não existir nenhuma outra teoria global que a substitua.

P - O que acabas de relatar é muito interessante e tem analogias em vários ramos do saber. No domínio da paleoantropologia por exemplo, a tipificação de uma espécie, muitas vezes a partir de um número reduzido de fósseis, cria (mentalmente) uma categoria estanque. Ou seja, essa espécie (admitindo que fosse real) só podia ter evoluído transformando-se noutra, mais recente, ou extinguindo-se e deixando espaço para outra espécie ocupar o nicho ecológico, deixado vazio. Assim, a existência (constatada hoje, para além de qualquer dúvida, graças à genética molecular) de hibridações interespecíficas, em antecessores dos humanos, não era concebida ou era considerada heresia, pelos paleoantropólogos há 30 anos atrás. A revolução conceptual da descoberta de grandes pedaços do genoma neandertal e denisovano nas populações humanas atuais, ainda está por «digerir» inteiramente. É difícil, para alguém que sempre pensou a evolução enquanto sucessão de mutações, conducentes a uma melhor adaptação, formando espécies cada vez mais aperfeiçoadas, ser confrontado com o modelo oposto: Uma evolução ramificada, com múltiplas introgressões, na árvore evolutiva humana e pré-humana.

G- A imagem que nos fica na Paleoantropologia, na Genética e mesmo de outras ciências, é que a ideia do humano está datada. Nós construímos uma civilização com base num humanismo renascentista, o qual tinha toda a razão de existir, quando apareceu e nos séculos imediatos. Mas agora, embora não seja a «morte do Homem» é - parece-me - a morte da imagem que nós temos de nós próprios. Não achas que o vazio e a incerteza daí decorrente podem ser ocasião para se afirmarem ideologias tão absurdas e nefastas como o racismo, o eugenismo, etc.? O transumanismo é apontado, por alguns, como sendo o futuro mas creio que estamos perante a imposição autoritária, mais uma vez, dum modelo de poder sobre a humanidade. 

P- Sim, o desejo de poder é o que carateriza melhor as elites eugenistas (que continuam a existir) e que propagam, através dos seus meios consideráveis, a sua visão do mundo. Elas fazem-no em relação ao transumanismo, mas também em relação à Nova Ordem Mundial. Têm ideias malthusianas e nós todos sabemos como isso acaba. As visões de «fim do mundo» são propaladas por alguns, amplificadas e retomadas por pessoas que nem suspeitam como foram influenciadas. De facto, a humanidade no seu todo complexo, não é mais evoluída que outra espécie qualquer. Não faz sentido dizermos que somos mais evoluídos que os gorilas ou que os golfinhos. Porque as espécies de gorilas e de golfinhos que existem à face da Terra hoje, são as que subsistiram, depois de milhões de anos de evolução. Quer por acaso, quer por estarem melhor adaptadas ao seu ambiente, estas espécies nossas contemporâneas sobreviveram, outras desapareceram. A ideia de uma evolução «progressiva» embora muito atraente para o espírito está centrada na nossa existência, é o mito do antropocentrismo. Nós, subjetivamente, pensamos estar cá nesta Terra porque fomos os mais aptos, mais evoluídos que outros hominídeos. Mas, isso não se passa assim. Há muito de arbitrário, de caótico, na evolução das espécies e nós - humanos - somos apenas uma entre  milhões de outras espécies e os mecanismos que se aplicam a essas outras espécies, também se aplicam a nós. 

G- É difícil ao público, em geral, apreender que somos diferentes do que idealizamos, como autoimagem. Mesmo para os cientistas, custa a crer que sejamos uma espécie entre milhões. Esta ideia - por mais que seja aceite intelectualmente- esbarra com crenças profundas: A «natureza humana», a «essência de ser-se humano», tudo isso vai esbarrar com a biologia, porque esta não tem que assumir valores, esta limita-se a usar critérios (questionáveis e mutáveis) do que se considera humano ou não. Por exemplo, se nós tivermos um ADN dum fóssil com cerca de 200 mil anos, portanto contemporâneo de seres humanos " modernos mais antigos", visto que existiram H. sapiens em África nessa época, mas esse fóssil apresentar características humanas e outras não-humanas. Se esse ADN revelar que em termos de sequências «consensuais» com os genes humanos atuais, existe uma divergência importante, embora menor que em relação aos outros símios ... Como classificar esses fósseis? Estou a pensar em Homo naledi  

P- Sim, o problema que colocas, no fundo, envolve toda a problemática da classificação. Nós sabemos que a classificação começou a ser uniformizada, pela ciência, na época de Lineu. Nesse tempo, a Criação era vista como uma coisa estática, as espécies estavam definitivamente formadas e não se entrecruzavam no estado selvagem. Os poucos híbridos conhecidos eram entre animais domésticos. Por isso, o conceito de espécie surgiu como algo de «natural» quando, na verdade, era apenas uma construção arbitrária do intelecto. Toda a ciência biológica recorre a este conceito, mesmo quando ele é muito pouco apropriado, como em Bacteriologia, Virologia, ou Micologia...

G- Sim, a ciência está ligada a construções históricas de conceitos, não havendo possibilidade de transformar esses conceitos, senão através de múltiplas ruturas. Por exemplo o conceito de gene, que é tão recente afinal: Ele data do início do século XX, assim como a própria palavra «gene». Este conceito evoluiu de forma decisiva e hoje já não tem grande coisa que ver com a ideia de «gene», dos melhores e mais avançados geneticistas dos anos 1920... Penso que tanto o conceito de gene, como o de espécie perduram porém, porque têm algo de útil, por muitas exceções que possamos colocar às respetivas definições. O conceito de espécie, como sendo de indivíduos que se entrecruzam livremente no seu ambiente natural e dando descendência fértil, é posto em causa em múltiplos casos, no Reino dos Fungos, das Bactérias ... Mesmo nas Plantas superiores, o conceito não é pacífico, pois é tão frequente a fecundação cruzada (em ambiente natural) entre espécies aparentadas, dando híbridos viáveis e férteis. Isto é do conhecimento dos estudantes em Botânica. 

P- Muitas polémicas em paleontologia e em paleo-antrolopogia estão centradas em torno das definições dos termos, em torno de semântica. Ás vezes, parecem-me mais a afirmação de egos, do que  debate científico. Poucas pessoas têm a noção de que os cientistas são gente comum, com sentimentos comuns, com reações comuns. Alguns elementos destacam-se, como em todas as profissões, pela sua criatividade, originalidade, etc. Mas, por vezes , fico com a sensação de que os próprios cientistas de colocam numa «casta» à parte, nada interessada em dar publicidade às suas teorias e descobertas, para além do círculo restrito dos seus pares. Mas, este comportamento elitista está a mudar, devido à enorme quantidade de jovens cientistas, de todos os cantos do mundo, que investigam e que são o motor real da investigação. Sem eles, a ciência seria morta, seria uma «seita» esotérica, sem qualquer relação com a realidade do mundo. 

G- Sim, a educação científica progrediu muito, em termos de quantidade e de qualidade. Mas, ainda tem de percorrer um vasto percurso. Eu penso que ainda poderá ser alcançado outro patamar, porque a ciência não é esotérica, é a forma de conhecimento que deveria ser a mais aberta, por definição. Vejo também uma crescente participação de mulheres em todos os ramos da investigação o que, não apenas reflete sua igualdade, em termos intelectuais, mas também a imagem que as jovens têm delas próprias.

P- Bom tema para a próxima troca entre nós, G: A problemática da ciência e a sexualidade humana! Até breve!

G- Gostei muito desta primeira conversa. Estou de acordo em pegar no tema que propuseste. Até breve!

 


quinta-feira, 9 de junho de 2022

Que teoria política para o nosso tempo?

[REFLEXÕES DE MANUEL BANET] 


- A igualdade não é uma fórmula quantitativa. A liberdade não é  um conceito abstrato. Ambas estão em íntima relação.

A retórica habitual dos atores da política centra-se muitas vezes nestes dois conceitos de «liberdade» e de «igualdade». Mas nós não devemos entrar numa discussão nos seus termos sofísticos. Por isso, digo que a liberdade não é um conceito abstrato. Entenda-se a afirmação anterior, quando estamos a construir um programa, com objetivos claros e com estratégias exequíveis. Politicamente, a liberdade só pode ser avaliada como uma propriedade ou característica relativa ao funcionamento do sistema político no seu todo e nas suas partes; e isto, «desce» até ao nível dos indivíduos. A liberdade nunca pode ser «concedida», é uma propriedade integral do sistema, o qual será tanto mais pleno de liberdade, quanto mais ou melhor se verificarem tais e tais condições, para os indivíduos e comunidades. 

Do mesmo modo como afirmo relativamente à liberdade, também a igualdade deve ser vista como uma característica sistémica, nunca se poderá ver em isolamento, nem tem sentido reclamá-la sem que se verifiquem as condições de liberdade para assegurá-la. Igualdade sem liberdade, não faz sentido. O inverso, liberdade sem igualdade, também não. Isto significa que todas as retóricas que se destinam a dar prioridade a uma em detrimento da outra, são discursos vazios, sem substância ou coerência lógica. Não podemos medir a igualdade, mas podemos avaliá-la: Ela traduz-se, no concreto, em igualdade de meios e condições materiais* de que usufruem os indivíduos, não apenas no plano dos direitos e deveres cívicos ou políticos, como nos restantes. «Igualdade», em termos de discussão política séria, não pode significar uniformidade, não pode significar uma repartição «igual» da riqueza. Além de que a tentativa de alcançar este objetivo é contrária à manutenção da liberdade dos indivíduos e comunidades, logicamente tal implicaria uma classe de burocratas, fosse qual fosse a ideologia afixada, encarregues de administrar essa tal «igualdade». Pode-se compreender que tal burocracia, inevitavelmente, terá o essencial do poder (e com as benesses que daí decorrem), enquanto todos os outros ficarão sem poder: Logo, não existirá nenhuma igualdade, mas o contrário**. 

------------------------------------

*Alguns usam a expressão «igualdade de oportunidades», mas eu penso que esta formulação é enganadora. Pode parecer que um filho de rico e um de pobre, têm as «mesmas oportunidades», se frequentarem a mesma escola: Na prática, isso não é assim. Por outro lado, alguém com um melhor desempenho na sua profissão que outros, não seria justo que lhe fossem recusadas maiores oportunidades para potenciar a sua formação, etc. devido a um princípio rígido «igualitário». 

**Perante a experiência longa e penosa do regime saído da revolução bolchevique e de todos os seus avatares que surgiram sobretudo no século XX e debruçando-me em profundidade  sobre essa história, cheguei à conclusão de que foi feita a demonstração pela prática e em tragédias terríveis para os povos em causa, do que afirmei sinteticamente acima.

-----------------------------------------

-Preservar o máximo de conectividade e de autonomia. 

Na natureza, verifica-se que seres vivos, populações e comunidades  perduram no ecossistema, graças às estratégias que desenvolveram ao longo da evolução e que lhes permitem um máximo de resiliência. Ora, esta resiliência numa espécie social, como é o caso da nossa, equivale a manter um relacionamento, que será sempre diferenciado, com os outros: A família, os colegas de trabalho, o grupo de amigos, etc. Note-se que uma das tragédias maiores do nosso tempo, é o paradoxo da abundância material ao nível social, enquanto se assiste a um isolamento cada vez maior do indivíduo: Em vez da partilha, o fechamento; em vez do convívio, o isolamento; em vez da comunicação, a agressão, etc. Muitos médicos e cientistas sociais sabem que, nas sociedades contemporâneas, as patologias mais frequentes são de natureza social na sua génese.

A autonomia dos indivíduos, dos grupos e das sociedades, não é a antítese da conectividade. Há mesmo um efeito de potenciação de ambas. Se pensarmos quem é mais autónomo, não são pessoas com menos conexões, pelo contrário. E o mesmo se poderá observar em conjuntos maiores: Em famílias, comunidades locais, regionais ou nacionais. A autonomia não deve ser confundida com autarcia: São posturas essencialmente diferentes, apesar do prefixo «auto» ser comum. A autonomia significa que o indivíduo ou grupo não está dependente, em qualquer aspeto vital, dos outros quer estes sejam indivíduos ou grupos. Mas, não significa que o ser autónomo rejeite o intercâmbio, a realização conjunta de projetos. Aliás, verifica-se no concreto que, quanto maior autonomia do indivíduo ou grupo, mais está disponível para se abrir aos outros, ao exterior. A atitude que se pode classificar de autarcia, implica a vontade de isolamento e a organização dos diferentes aspetos da vida para realizar e manter esse isolamento. Num indivíduo, corresponde com frequência a uma patologia, a um autismo. Numa sociedade, traduz-se na redução ao mínimo dos contactos com o exterior, quer nos planos das trocas comerciais e culturais, ou na circulação dos indivíduos, etc. Em geral, quando se pensa a independência em termos de Estado, de Nação, é no plano da autonomia dessa Nação, em relação a outra ou outras, que é entendida, não se está a pensar em alcançar um estado de autarcia.

- Gerir ao nível local o que é adequado ao nível local.

A sociedade de hoje é demasiado complexa para poder viver em autarcia. Esta ocorre "naturalmente" pelas circunstâncias em que se encontrem pequenos grupos, tribos ou etnias, muito isoladas da civilização: Por exemplo, nalgumas tribos da Amazônia. Mas, em sociedades complexas, existem demasiados patamares a ter em conta, o que tem provocado dois movimentos contrários: Ou uma tendência centralizadora, impondo as soluções de cima para baixo, do centro para a periferia; ou a solução de atribuir autonomia de decisão e correspondente responsabilidade aos atores de cada um desses patamares. No caso primeiro, assiste-se a um estreitar ou mesmo anular da autonomia e das liberdades, em grau maior ou menor, consoante a violência com que essa centralização é imposta. No segundo caso, é condição para a gestão do grupo e da sociedade, no respeito dos indivíduos e coletivos. Digo condição, apenas, porque para que se realize tal funcionamento, em qualquer dos patamares, é necessário que os atores estejam conscientes dos valores e treinados no debater e agir coletivamente. 

- Construção orgânica dos diversos patamares com metodologias comuns, mas âmbitos legais distintos

Se a organização da sociedade for erigida desde a base, sem imposições de uma elite que se coloca como a «representante» (na realidade, a proprietária) da população, os diversos patamares de organização têm de obedecer aos mesmos princípios gerais. É portanto inútil e mesmo prejudicial estar a especular sobre o concreto dessa organização social, o fundamental é haver, ao nível da população, um entendimento consensual do que sejam os princípios de uma boa governança. Esta «governança», por oposição a «governo», seria sinónima de linhas-guia relativas aos processos de tomada de decisão, de execução das medidas acordadas e de avaliação. Note-se que, aqui, não há apelo a uma utopia, seja ela qual for: As utopias deram demasiadas vezes em tragédias, na história da humanidade. Pelo contrário, a construção orgânica é anti -utópica: O que socialmente é construído, está em potência nos princípios gerais adotados pela sociedade. Não existe nenhum plano prévio, de como se deva organizar e gerir. São os próprios povos interessados, que se mobilizam, debatem e chegam a consenso sobre os caminhos a adotar nas diversas tarefas de construção de instituições. Quanto aos «âmbitos legais distintos»: Significa que determinado patamar tem competência legal para gerir uma determinada área geográfica, ou setor de atividade. Os princípios gerais devem ser adaptados, a cada um desses âmbitos, o que - evidentemente - deverá ser feito pela sociedade, não por um indivíduo ou grupo de indivíduos.

- Não ter pressa nas deliberações e ter preocupação na implementação das decisões

Muitas pessoas confundem rapidez, com eficiência. Isso é consequência duma sociedade em que ser-se servido imediatamente, segundo o seu capricho, tornou-se «exigência» das pessoas, que se acham no seu direito, sobretudo se têm dinheiro e poder. As deliberações entre iguais, têm de ser conduzidas com respeito por todos os intervenientes, seja qual for a metodologia utilizada no debate. Isto é lógico, pois se um ou alguns intervenientes no debate não são respeitados, então é evidente que não existe, ou deixou de existir, igualdade. A obsessão com a «eficácia» é - muitas vezes - uma forma de mascarar vontade de poder sobre os outros e sobre a sociedade. Os ditadores utilizam o argumento da eficácia para alargarem as medidas arbitrárias, para outorgarem mais poder a si próprios, etc. A eficácia é medida por aqueles que tomaram as decisões, fazendo pontualmente ou constantemente a avaliação do modo como estas são implementadas. Isto aplica-se em todas as esferas de atividades humanas coletivas e em todos os patamares de organização. Quem monitoriza a aplicação das decisões, detém uma parte importante do poder, senão mesmo todo o poder. Portanto, à decisão coletiva deve corresponder também a monitorização coletiva da sua aplicação. Num novo modo de organizar a política na sociedade, este aspeto deve ser tido em conta desde o princípio. Os processos de monitorização coletiva das decisões não devem ser estabelecidos a posteriori, mas concomitantemente à  tomada de decisão coletiva. O conceito-chave é de que a coletividade, seja a que nível for, tenha sempre o controlo do processo: tanto na etapa de discussão duma proposta ou resolução, como durante sua implementação, incluindo a sua monitorização e avaliação.  

- Guardar o realismo na avaliação das situações

No geral, as pessoas mais empenhadas são voluntariosas, tendem a tomar os seus desejos pela realidade. Isto é compreensível psicologicamente mas é prejudicial ao fim e ao cabo, em qualquer grupo ou coletivo, pois impede que aquilo que não está a correr bem, seja retificado. Sem crítica permanente, bem acolhida no debate, não relegada para as margens, o realismo não pode existir, na prática. Nas sociedades autoritárias, a ausência desse debate livre, a não aceitação do papel da crítica, vão conduzir - inexoravelmente - a decisões nefastas para a sociedade e até, por vezes, para o próprio poder instituído. Daí que as sociedades autoritárias sejam, ao contrário do que muitos pensam, menos estáveis do que as sociedades onde a crítica, a aceitação natural dos pontos de vista divergentes, sejam prática corrente.   

-Reconhecer que a atitude inteligente é sempre a de cooperação 

Nós - humanos - não teríamos qualquer hipótese de ter sobrevivido enquanto espécie, sem termos criado coletivamente um ambiente que se diferenciou progressivamente do ambiente natural. Este novo ambiente, humanizado, constituiu-se como um nicho dentro do ambiente natural, tornando possível a vida da sociedade humana. Nos processos fundamentais da evolução humana, a entreajuda tem um papel central. Não digo que não houvesse competição; reconheço que a competição - num certo grau- foi importante para a evolução tecnológica existir. Porém, é preciso desfazer de vez a crença numa versão deturpada e totalmente ideológica do darwinismo, imposta pela classe dominante. Com efeito, sua ideologia difusa, o «neoliberalismo», tem sido arauto de chavões como: Temos de aceitar que há sempre «vencedores e vencidos», no mundo natural e nas sociedades humanas; deve-se aceitar a «lei» de que são selecionados os mais aptos, os melhores, através da competição. Ao fim e ao cabo,  qualquer biólogo ambiental e mesmo, qualquer espírito esclarecido, pode aceitar a premissa de que a competição não só é positiva, como é essencial para a sobrevivência da sociedade. Mas, curiosamente, são os difusores desta ideologia neoliberal que - na prática - fazem tudo para eliminar os seus competidores, para erigir um sistema monopolista na economia e uma falsa competição na política. Em muitos países, os partidos concorrentes aos lugares de poder partem das mesmas premissas básicas, são difusores da mesma ideologia.

Nunca é demais sublinhar que as sociedades precisam da estabilidade. Que é a estabilidade que lhes permite inovar. As revoluções são, em regra geral, baseadas nalguma ideia de transformação profunda da sociedade, que seria absoluto dever levar-se a cabo. Esta ideia de revolução serve bem uma casta sequiosa de poder, seja qual for sua ideologia. Esta prepara-se cuidadosamente, muito tempo antes da revolução, antes das condições para tal revolução estarem maduras. O seu discurso oficial não revela suas intenções. Essencialmente, a casta quer dominar as massas, gerir a sociedade à sua maneira. O poder resultante da revolução é sempre, «por coincidência», o que favorece essa mesma casta, que a mantém no poder e a enriquece. Nalguns casos, consegue perpetuar os seus privilégios, até se tornarem hereditários, ou seja, uma classe à parte.

Pelos motivos acima, devemos difundir a pedagogia  de nos habituarmos a avaliar alguém, ou um partido, ou corrente, não pelo seu discurso, mas pela sua prática, por aquilo que fazem, não pelo que proclamam. Por exemplo, não basta que um grupo seja favorável à cooperação, em discurso. É preciso que a sua prática quotidiana, o seu modo de funcionamento interno, seu relacionamento com outros indivíduos ou grupos, sejam aplicações claras dos princípios de cooperação, de entreajuda, de troca igual, etc. Caso contrário, tal grupo, estará a construir um projeto de tomada de poder sobre a restante sociedade.

Não irei aqui fazer o elogio da cooperação, existem muitas obras que o fazem bem. Para mim parece-me algo evidente, que tem inúmeras vantagens sobre a competição egoísta, sobre a obsessão pela conquista do poder, etc. A minha intenção, neste curto texto de reflexão, foi de mostrar que as ideologias que exaltam o indivíduo acima e se necessário contra a sociedade, as que opõem bem-estar individual ao bem comum, como se estes fossem antagónicos, são - na realidade - o contrário do liberalismo genuíno, ou seja do liberalismo que surgiu no século XVIII, dos filósofos das luzes, e não do «liberalismo» que foi, depois disso, o estandarte ideológico da «política da canhoneira», levada a cabo pelo Império Britânico, ao qual sucedeu o Império Yankee.
No presente, de forma deliberada para falsear o debate, são excluídas, ou deturpadas até à caricatura, as formas de pensar as relações entre humanos, a política no sentido mais nobre da palavra: Nomeadamente, as correntes que preconizem a igualdade verdadeira (sem «igualitarismo»), a autonomia (que não significa «autarcia») e a cooperação (que não exclui, mas integra, a competição).
Se estas ideias tiverem uma significativa implantação nas sociedades contemporâneas ou, pelo menos, em segmentos destas, poderão demonstrar - pela prática - não apenas a sua viabilidade, como suas vantagens face ao modelo hierárquico, elitista, de exercer o poder.
É um problema difícil de resolver; não foi resolvido no passado, por muitos motivos, entre eles: A sabotagem de tais iniciativas, pelos poderes instituídos; a dificuldade dos próprios protagonistas das experiências de sociedade não-hierárquica, cooperativa e livre, em se desfazerem dos preconceitos ou erros conceptuais importados das sociedades das quais eram originários.

------------------------------//----------------------

Gostaria muito de receber as vossas críticas e opiniões sobre este texto. Ele tem apenas como função despoletar a discussão. Não tenho dúvidas de que qualquer dos pontos tratados foi apenas aflorado; que seria necessário desenvolver e argumentar muito mais as minhas teses.
Por outro lado, penso que só a reflexão coletiva e a discussão, podem proporcionar a maturação das ideias, a partir deste esboço. Esta atitude está em coerência com o espírito de cooperação, de entreajuda. Escrevam o que pensam na secção de comentários por debaixo deste texto ou enviem-me as vossas opiniões sob forma de e-mail, para: manuelbap2@gmail.com

Aguardo, com sincero interesse, as vossas reflexões!












segunda-feira, 30 de maio de 2022

A REALIDADE ACABA, SEMPRE, POR SER MAIS FORTE


Mattias Mesmet avança explicações sábias para a hipnose coletiva que assolou o Mundo inteiro durante a «pandemia» de Covid.
Agora, com hipnose ou sem ela, as pessoas parecem-me enraivecidas contra os que são designados «os maus» pela propaganda. Fico chocado com a total rendição de pessoas, outrora defensoras de valores do humanismo e direitos humanos. São capazes de atitudes discriminatórias, aprovando-as ou ficando indiferentes, face à demonização de todo um povo, o povo russo.
Nenhum povo tem a responsabilidade dos atos dos seus dirigentes, na verdade. Nós sabemos isso: No Ocidente, também, governos e maiorias parlamentares costumam decretar ou votar medidas ao contrário dos programas eleitorais na base dos quais foram eleitos.
Dizer que «o povo tem os dirigentes que merece» é uma grande injustiça. É como se o povo, enganado, tivesse -ainda por cima! - a responsabilidade pelo mal que os políticos fazem! O facto de fazerem esse mal, e que seja feito em nome dos eleitores e do povo, é apenas adicionar escárnio à injúria.
Eu não sei qual a popularidade respetiva dos diversos dirigentes mundiais; não tenho confiança nos «institutos de sondagens»; nem sequer, no que significam as eleições num dado país pois, como disse acima, as pessoas costumam ser completamente enganadas. São inundadas por promessas demagógicas, ou submetidas uma intensa propaganda de ódio contra os «inimigos designados» do momento.
De facto, pouco importa. Pois a minha preocupação é que as pessoas comuns estão demasiado dependentes da bolha de narrativas enganadoras, que recebem constantemente, da média corporativa e que realmente consegue influenciar a generalidade do público.
O efeito é de tal ordem, que as pessoas não acreditam naquilo que têm diante dos olhos: É o conto d'«O Rei Vai Nu» que deveria ser reescrito, de acordo com a versão de Bob Moran:


Em face do que se tem passado, verifico que o meu receio duma nova «idade das trevas», dum recuo civilizacional, parece confirmar-se.
Não vejo outra saída, que não seja ao nível de pequenos grupos de indivíduos, que se juntem para se entreajudar e para encontrar formas inteligentes de resistir.
 O convencimento das pessoas não decorre -infelizmente - de ouvirem ou lerem uma qualquer argumentação racional contrária às suas crenças. Mesmo quando se apresentem muitos argumentos racionais e lógicos. Os humanos não são seres racionais, mas «que racionalizam».
De facto, muitas pessoas preferem teimar que têm razão, a terem que conceder que se enganaram, ou que se deixaram aldrabar por um trapaceiro, etc.
Não perdoam a alguém que lhes demonstre que elas estavam enganadas. Mesmo que esse alguém utilize linguagem cordata, não agressiva e quando os argumentos são realmente bons.
O seu «amor-próprio» faz com que recusem aceitar que foram arrastadas na «manada», ou seja, na onda de entusiasmo momentâneo, emocional.
Então, não há nada a fazer?
- Não é bem assim: Há que manter a criteriosa avaliação da realidade, tal como ela é. Não cairmos no pessimismo, nem deixar de ver as realidades em face, mesmo quando elas são «feias». Há que ter muito autocontrolo e não querer convencer, seja quem for: as pessoas convencem-se a si próprias, em consequência das circunstâncias em que são colocadas. Ou vivem uma experiência que faz a diferença, ou nunca mudarão de opinião, seja sobre o que for. É o primado da prática.
Para algumas pessoas, um leve trauma chega para mudarem de atitude. Para outras, é necessário um acontecimento muito mais marcante.
Para a generalidade das pessoas, o «efeito de vizinhança» tem um papel decisivo; quando - em volta do indivíduo - estão todos a apoiar determinada narrativa, quase ninguém se atreve a contrariar essa versão.
Vimos, no caso do COVID, que muitos profissionais de saúde tinham fundadas e sensatas objeções, quanto aos métodos de tratamento, mas tiveram que se sujeitar aos protocolos impostos administrativamente, inadequados e que fizeram aumentar o número de mortes. Porém, não foram frequentes os que se rebelaram. Os que o fizeram, foram arrastados na lama. Em muitos casos, foram punidos por terem mostrado independência. Um grande número terá recuado e fingido concordar com as diretivas, por receio de ter sua carreira e emprego postos em causa.
De facto, as pessoas que controlam as narrativas são, muito diretamente, pessoas do poder. Mesmo, quando se revestem de títulos científicos (como Ferguson ou Fauci e muitos outros) são - de facto - os que falsificam a ciência, pretendendo ser «a ciência». Seu jogo consiste em favorecer os poderosos, multimilionários, cuja fortuna é superior ao PIB de nações e não das mais fracas.
Os governos são manipulados por este grupo de super-ricos: Tudo o que esta aristocracia tem de fazer, é manter os «seus» políticos na dependência, através de generosas doações.
Qual é o político que, para não fazer algo que contradiga as suas convicções, prefere perder as eleições, porque perdeu os apoios financeiros para a campanha dispendiosa ?
De facto, só chegam a disputar o poder, pessoas que realmente não têm escrúpulos nenhuns. Já tenho demonstrado, noutros artigos, como o sistema dos partidos é uma espécie de sistema de seleção darwiniana ao contrário: Só sobrevivem, prosperam e triunfam, os piores, os menos escrupulosos, os destituídos de moral, os que desprezam seus eleitores.
Nestas circunstâncias, a questão nem se põe de querer disputar algo no terreno político, que está completamente corrompido.
Mas, faz sentido nos reunirmos com pessoas que estejam também elas fartas desses psicopatas e sociopatas.
O essencial é construir alternativas de vida, de relacionamento, de educação, capazes de manter um certo número fora da atração da política: Pessoas capazes de construir-se, de forma integral, quer no plano profissional, familiar, ou social.
A «democracia», tal como é praticada no Ocidente, é «um repelente» para pessoas saudáveis, com bons instintos, que não gostam de dominar os outros, nem ser dominadas.
Pois essas pessoas existem e não são poucas. Eu não sei se, eventualmente, são a maioria, ou não. O que eu sei, pela minha experiência vivida, é que muitas pessoas se julgam muito mais impotentes, do que na realidade são: Pensam estar isoladas, marginais, mas isso não é verdade, pois - de facto - existem muitas outras como elas.
O tipo de vida nas nossas sociedades, é que é  causador desse isolamento. As vidas das pessoas são compartimentadas: Não têm verdadeiros convívios, além da família, mas mesmo esta é muito restrita, visto que a família alargada (tios, primos, etc.) «desapareceu». Só resta, na prática, a família nuclear (o casal e os filhos).
No fundo, trata-se de cultivar a convivialidade, com o propósito de que vá além do mero prazer de conviver. Seria interessante desenvolver «clubes», «academias», ou outros agrupamentos onde as pessoas possam realizar o que gostem e interagir com outras, cujos interesses sejam afins.
Note-se que isto não implica, de modo nenhum, uniformidade ou convergência política ou ideológica. Não é o propósito deste tipo de associações. A verdade é que estas associações são de natureza cultural. São polos de civismo, que educam e perpetuam relações de entreajuda, de tolerância e promovem a construção de projetos em comum.
Estamos em plena era digital, da Internet e dos smartphones mas, isto não significa que a procura de contato direto, genuíno, baseado nos interesses das pessoas, deixe de fazer sentido. Considero que é preciso reinvestir este campo da sociabilidade direta, sem ser com uma finalidade «interesseira». A motivação não deveria ser profissional, de negócios, ou partidária.
Não possuo um «livro de instruções», para a construção de tais associações. Pode-se partir de instituições existentes, que precisam de ser revitalizadas, ou de grupos, mais informais, de afinidade. É frequente acontecer - espontaneamente - entre adolescentes que partilham o mesmo gosto por desporto, ou por música. Mas, pode ser cultivado em qualquer outra etapa da vida.
De qualquer maneira, existe um campo enorme para um trabalho transversal, que não passa por relações «mercantis» ou «hierárquicas». É neste campo que julgo valer a pena nos investirmos, não em estruturas de poder, que são as associações de cariz político.
----
PS1: Veja artigo do Dr. Robert Malone, confirmando o que digo acima, a propósito da onda de medo induzida pela media, usando «monkeypox»: